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Contos e Causos

Benedita, A Filha dos Bodes

Caros Irmãos e leitores,

Inaugurando a coluna “Contos e Causos” eu trouxe um romance baseado em um “Causo” real envolvendo uma jovem escrava de nome Benedita e a Loja Lealdade e Brio da Cidade de Resende no ano de 1874. Espero que gostem!

BENEDITA, A FILHA DOS BODES

Por Cloves Gregorio

Era uma noite fria e a chuva já tinha encharcado os paralelepípedos da ladeira íngreme em que se encontrava um pequeno edifício de dois andares no estilo colonial. A tempestade era tamanha que os postes de querosene não conseguiam se manter acesos e, não fossem as lâmpadas a óleo e as velas das residências, a rua, que subia até um pequeno largo, estaria um breu.

A vizinhança tinha casas e sobrados colados umas nas outras, sem espaço para quintal ou corredor, e estas, tinham o mesmo estilo do local de reunião dos obreiros da arte real. O prédio em que se reunia a loja era a única construção que não estava junta das outras, tinha espaços de ambos os lados de mais ou menos um metro entre o edifício a casa dos vizinhos. Este não tinha janelas, a frente maciça abrigava uma pesada porta de madeira em forma de ogival dupla. O cume deste era em formato triangular e no meio em alto relevo tinha uma figura peculiar aos olhos profanos, um pelicano flagelando seu peito para dar de comer a sua prole.

Todos já se encontravam revestidos de suas joias e a loja já tinha dado início aos trabalhos. Apenas o Irmão Umbelino, Cobridor externo, se encontrava no Átrio. O velho cobridor tinha bem seus cinquenta anos, seu rosto apresentava marcas pesadas do tempo, olhos muito azuis, e uma saliência na testa que mais parecia um galo, seu cabelo era branco e tinha sinais de calvície. O cômodo em que se encontrava era relativamente simples, tinha uns dezesseis metros quadrados, assoalho de cimento queimado, algumas cadeiras e algo que destoava dos demais espaços dedicados a Lojas maçônicas, a esquerda tinha uma escada em “L” que dava acesso ao pavimento superior e a direita um pequeno fogareiro a lenha de ferro fundido, dele saía uma chaminé tubular também de ferro que entrava na parede e terminava do lado de fora e quando fumegando dava vida a loja. Mal sabem os irmãos que este curioso objeto foi trazido do recém-independente EUA por um dos filhos de Umbelino e o mesmo resolvera doar a loja com o intuito de esquentar o café e o caldeirão de sopa que sua esposa sempre fazia em dias de reunião para que o marido compartilhasse com seus companheiros. Sim, houve uma confusão tamanha e muitos o acusaram de querer modernizar algo clássico. Umbelino na época passou sua proposta por poucos votos, do qual só conseguiu vencer por que resgatou a memória do “Ganso e a Grelha”. De volta ao café, o bule já se encontrava no fogareiro e o líquido negro fumegava soltando o vapor com aroma agradável que só o café do Brasil tem.

O Velho cobridor levantou de sua cadeira ao lado da porta da sala da Loja e foi pegar uma caneca de café, quando ouviu batidas desesperadas e sem força na porta ogival. Havia deixado sua arma de fogo em casa. Sua espada sem fio não resolveria algum eventual problema. Em um momento pensou em não abrir, mas seu coração sensível ao bem o lembrou que ele deveria levar alento aos aflitos, e quem sabe não fosse um irmão desesperado por ajuda. Então, se tomou de coragem, empunhou a espada sem fio, destrancou a porta e abriu. A chuva ainda castigava a rua e uma figura saltou e agarrou suas pernas. Era uma menina que não tinha mais de doze anos, negra, com os olhos de um amendoado incrível e cabelos bem curtos e maltratados, pareciam que tinham sido cortados a faça. A criança agarrada aos pés de Umbelino disse:

– Sinhô, me ajuda, me esconda! Se meu feitor me encontrar irei para o tronco até a morte!

O Velho cobridor não hesitou e com sua voz firme e serena disse:

– Entre infante, eu cuidarei para que não sofra mal algum.

A voz de Umbelino era um misto de trovão em poder e agradável como uma melodia de Mozart.

Umbelino largou a espada que caiu para dentro do prédio, pegou a menina pelos bracinhos que mais pareciam dois bambus de tão finos. Em segundos pensou que ela talvez fosse mais leve que um saco de algodão. Depois de colocar a menina acomodada em uma cadeira perto ao fogareiro, o cobridor logo bateu a porta e ao invés de fechar apenas com o pequeno trinco ele passou a mão em um tronco de maçaranduba de uns 1,5m que mais parecia um aríete portátil que ficava encostado na parede ao lado da porta e o encaixou em ganchos em ambos os lados na borda do portal. Sendo assim impossível qualquer humano sozinho forçar a entrada. Logo, voltou a dar atenção a menina que reclamou de muita dor no corpo e frio. O homem rapidamente colocou a mão na testa da garota e percebeu que ela estava com febre.  Então, correu rapidamente para o vão que ficava embaixo da escada e ao que parecia era um armário improvisado, pegou um velho capuz bem grande que pertencia ao experto da loja, mas que no momento serviria muito bem para aquecer a garotinha. Ela era esperta e já esticara as mãozinhas para próximo às chamas, friccionava uma na outra e de tempos em tempos baforava ar quente nas palmas. Umbelino se aproximou e cobriu a menina com o capuz que agradeceu:

– Obrigado seu moço! – disse a menina com meiguice e alegria.

– Não ha o que agradecer, e outra, já não sou mais moço a muitos e muitos solstícios, e você pode me chamar de Umbelino – Disse em tom descontraído e continuou – Agora me responda pequena, como chegou aqui?

– Seu Umbelino, eu vim batendo de porta em porta e ninguém ajudou, até que na quinta disseram que talvez vocês aqui, adoradores do bode, pudessem me ajudar. Eu fiquei com medo, mas não tinha mais aonde ir e nem se abrigariam uma negra.

– Pequena – disse o cobridor enquanto pegava um pano de prato que estava ao lado do fogareiro e secava a cabeça da menina e continuou – aqui não fazemos distinções de raça, fique tranquila pois você está segura. Me responda agora, qual o seu nome?

– Benedita – então tentou lembrar algum pronome de tratamento que vira seus donos outrora utilizando – meu… bom sinhô! Porque a senhora disse que vocês adoram o bode?

Umbelino não continha o riso e respondeu.

– Aquela senhora é louca e fofoqueira. E mais, tem uma bocarra que não consegue conter a língua atrás dos dentes!

O Maçom pegou uma caneca de ferro que estava pendurada pela asa a um prego fixado na parede, ao lado do fogareiro e encheu com café, o vapor que saía do bule incensava ainda mais o lugar, dando um ar aconchegante. A maçaneta da sala da Loja girou e a menina deu um pulo para trás e quase esbarrou no bule quente. Suspirou profundamente. Na porta surge Martim, o cobridor interno. Esse irmão tinha mais ou menos 1,7m, branco, bigode espesso, cabelo bem curtos, ambos castanhos bem escuros, olhos pretos feitos jabuticaba. Umbelino tapava a visão do cobridor interno sobre a menina.

– O que houve? Os irmãos ouviram um barulho e o venerável pediu para eu vir verificar – Disse Martim.

– Esta linda criança apareceu pedindo socorro, por isso os barulhos – disse Umbelino enquanto entregava a caneca com o líquido quente a menina.

Quando Martim esticou o pescoço para espiar quem era a ilustre visitante, seu semblante mudou e disse exasperado:

– Você trouxe uma escrava CRIOLA para o nosso convívio? – Benedita que tinha acabado de tomar um golinho de café, se assustou e acabou se engasgando.

Nesse momento, o belo discurso sobre não haver distinções que o velho cobridor tinha acabado de proferi a pequena caía por terra. O rosto de Umbelino aqueceu e ficou ruborizado, típico de quando o sangue sobe a cabeça, tomado pela fúria, decidiu que as pesadas e preconceituosas palavras de seu irmão não passariam. A voz de trovão, duras e sem nenhuma amabilidade foram voltadas a Martim.

– Martim, por um acaso julgais que fazemos distinções aqui? – conforme falava, a cólera tomava mais ainda sua alma e continuou – Não aprendeste nada no seio de nossa Augusta fraternidade? Não faça me arrepender de ter  o aceitado em nosso meio, pois suas palavras foram tão preconceituosas quanto a de um profano vil. Retire! Ou não me portarei a ti como irmão e sim como um profano de avental que quebrou seu juramento!

Um nó na garganta apareceu em Martim. As palavras duras de qualquer um da Loja pesariam, mas a do velho Cobridor que foi oficial do Exército era mais aterrorizante.

Continua…

Por Cloves Gregorio

Cloves Gregorio, 35 anos, casado com a senhora Gislene Augusta, Pai do Menino Átila, Historiador e Professor, Venerável Mestre de Honra (Past) da ARLS UNIÃO BARÃO DO PILAR Nº21 Jurisdicionada ao GORJ, Filiada a COMAB. Na Obediência já exerceu os cargos de Grande Secretário Adjunto de Cultura e Ritualística e Grande Secretário Adjunto de Comunicação e Informática.

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