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A Feiticeira do Arco e o Assassinato do Mestre Maçom: Parte II – O Diário de Miguel Antônio

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O Diário de Miguel Antônio

Jean Fenrir sentiu uma dor lancinante na cabeça, típico de quando estava sob pressão. Quase que no automático se abrigou no edifício onde ocorria a reunião e quando deu por si já estava na sala destinada a Loja, com seus irmãos maçons aglutinados, formando um semicírculo à sua frente. Estava de pé, meio atônito e segurava em uma de suas mãos a lâmina ensanguentada utilizada pelo algoz de seu padrinho. 

– Jean, desembuche “homi”! – disse João Matias, o Venerável Mestre de sua Loja de forma exasperada e continuou – O que aconteceu lá fora? 

– Meu padrinho, João. – disse Jean perdendo a voz, e continuou choramingando – ele foi assassinado, com essa lâmina – esticou o braço e segurando pelo cabo mostrou a pequena espada Maçônica que sentiram falta mais cedo, continuou a fala e um tom de revolta – Essa lâmina! Que antes nos fez tão feliz, tirou a vida de meu padrinho Miguel Antônio, sendo motivo de nossa tristeza. 

– Jean meu “fi”, sentimos todos a dor da sua perda, mas recomponha-se “homi”! Quem cometeu esse terrível crime? – disse João enquanto chacoalhava Jean pelos ombros. 

– Calma João, até mesmo o mais são dos homens podem desestabilizar-se diante da perda de um ente querido. – disse Felipe, um elegante senhor de cabelos, e cavanhaque grisalhos e bem feitos, de casaca marrom e gravata borboleta, que fazia parte do quadro de irmãos da Loja, era também um conhecido médico dedicado aos mistérios da mente humana, este invadiu a conversa chegando com um jarro e um copo de cobre em ação de colocar água e entregar ao jovem oficial da polícia.  

– Obrigado Doutor – Disse Jean enquanto pegava o copo da mão de Felipe. Após dar grandes goladas continuou – Meus Irmãos, meu padrinho Miguel Antônio foi apunhalado pelas costas, assassinado com uma perfuração no pulmão com nossa própria espada. Vi pouco, cheguei e o encontrei jogado no chão com a espada fincada em seu corpo, ao mesmo tempo vi uma criatura sinistra tomar direção para o Arco do Teles. Pelo pouco que pude perceber ele foi atacado enquanto tentava fugir para encontrar conosco. Ouvi o apito da guarda, retirei o espada e a trouxe para que o intendente não achasse que fora obra de maçons e promovesse uma caçada implacável contra nossa gente, vim ao encontro de vocês e cá estamos. 

Um alvoroço tomou conta da sala da Loja, pois muitos cogitavam que existia um assassino de maçons na cidade, outros falaram em crime passional, mas logo descartaram pela seriedade e o respeito que Miguel Antônio tratava sua esposa Dona Helena.

– Se acalmem cavalheiros, querem que os guardas escutem que estamos em uma reunião aqui? – disse doutor Felipe, então continuou – Temos de ficar quietos ou conversar baixo até que os homens do governo se vão. 

– Meus Irmãos, peço que fiquem aqui e que acautelem a arma que feriu de morte meu padrinho – disse Jean, e continuou – Já estou mais calmo e como comissário de polícia vou usar meu poder para interpelar a guarda sobre o ocorrido e acompanhá-los até a retirada do corpo, com sorte, por eu ter chegado primeiro, talvez o delegado deixe eu chefiar a investigação. – respirou fundo e continuou – Não sei se vocês sabem, mas além da Maçonaria, Miguel era meu padrinho na vida, logo, D. Helena minha madrinha. Assim que possível vou a casa dela levar a terrível notícia, aproveitar e verificar se tem algo que saiba para ajudar nas investigações. 

Todos pareceram concordar e desejaram cuidado. Mais uma vez Jean Fenrir desceu as escadas da sala da Loja para ir de encontro a cena do crime. Abriu a porta com cuidado e ganhou a rua. Deu passadas rápidas e ao se aproximar dos guardas que já estavam em pé junto ao corpo os fitou procurando as suas qualidades de militares pelas dragonas junto ao ombro e as fitas no punho da farda. Tratava-se de um sargento mor e um soldado, logo, ambos lhe deviam obediência, pois Jean faziam parte da classe que os comandava em rondas, investigações e prisões. 

Os guardas tinham uniformes azuis com detalhes em amarelo, um chapéu cônico com pequena viseira a frente, em seu fronte uma pluma azul clara com a ponta avermelhada. O sargento segurava em sua mão direita uma Dragoon, pistola bem parecida com de Jean e o Soldado examinava o corpo. Quando o Sargento avistou Jean chegando próximo a ele bradou  “alto lá cidadão, o que queres aqui?”. 

– Calma sargento, estamos do mesmo lado. – disse o jovem investigador – Sou Jean Fenrir, comissário sob os auspícios do Delegado Demóstenes, investigo crimes fiscais e de assassinato. 

– Senhor, que sorte o senhor por aqui. – disse o sargento com cara de alívio – Éramos em três, mas Romão teve uma caganeira e correu para o chamado da natureza, não sei por onde anda, e pra chamar o comissário responsável pela nossa ronda eu ia ter que mandar o Fernando e ficaria só aqui, ao lado desse antro de vagabundos que é o arco do Teles. 

– Quem é o pobre infelizmente que está no chão? – perguntou Jean com frieza. 

– Não tem qualquer identificação senhor. – disse o sargento, e continuou – ouvimos uma frase desconexa, só lembro de ter viúva no meio, e logo em seguida um urro de dor, toquei meu apito e viemos correndo eu e Fernando, chegamos aqui, mas infelizmente esse pobre coitado já estava morto. 

– Soldado! – Disse Jean – Vire o corpo para ver de quem se trata. 

– Sim senhor! – disse o soldado que já estava abaixado junto ao corpo, que o pegou pela lateral da casaca do defunto e o virou de barriga para cima. 

O semblante de Jean mudava mais uma vez, não foi nem preciso atuar, automaticamente uma lágrima caiu de seu olho direito escorregando pela bochecha, afinal ele mesmo já estava se sentindo mal pela frieza e cinismo com que tratava a situação. 

– Sargento, esse é Miguel Antônio. – disse Jean, e continuou com a voz embargada – meu padrinho, dono da casa comercial Antônio de Almeida. Tem alguma ideia de quem comentou esse terrível crime contra meu padrinho? 

– Que terrível coincidência senhor, meus pêsames. – disse o Sargento, mas continuou com desconfiança – Vocês estiveram juntos mais cedo? 

– Infelizmente não chegamos a nos encontrar. – Explicou Jean – passei em sua casa comercial para vê-lo e tomarmos um café como sempre fazíamos, mas ao chegar lá, ele já tinha ido. Pensei que ele tinha ido para casa mais cedo para cuidar de minha Tia Helena, sua esposa, pois ela estava um pouco resfriada, mas não, ele está aqui, como um indigente. Como não tive sucesso em encontrá-lo passei na casa de meu amigo médico Doutor Felipe, aqui ao lado, quando saí de lá e cruzei essa rua os vi aqui e vim prestar meu auxílio. 

Cena do Filme “Do Inferno”.

Mais uma vez Jean em seu íntimo se sentia um crápula, por mentir sobre o acontecidos com seu padrinho, mas era necessário para que ele pudesse apurar os fatos e manter os seus irmãos em segurança. Ele sabia que seu padrinho faria o mesmo. 

– Soldado Fernando. – disse Jean em voz imperativa – passe na guarda e peça uma diligência, vá até a Santa Casa e peça auxílio para a remoção do corpo. Eu e o sargento ficaremos aqui aguardando vocês e para responder o inquérito perante o intendente. 

O soldado rapidamente foi cumprir as ordens e cerca de uma hora e meia depois voltou com um veículo funerário. O corpo foi removido, Jean e o Sargento pegaram uma carona pendurados no carro funerário e soltaram no prédio da guarda. É claro que o intendente não estava lá, mas para sorte de Jean quem estava de plantão era o delegado Demóstenes, a quem prestava o serviço diretamente. Relatando o fato e expondo a sua ligação com a vítima, Jean conseguiu ficar responsável pela investigação, afinal Demóstenes conhecia o trabalho do jovem investigador e tendo um motivo pessoal resolveria mais rápido. 

Já eram quase quatro da manhã quando Jean pediu para que uma diligência o deixasse na casa de Dona Helena, a recém viúva de seu padrinho. 

Chegando na casa de sua madrinha, Jean reparou uma lâmpada a óleo acesa pela janela. Ao parar a carruagem da diligência em frente a casa, Dona Helena, uma senhora no alto de seus 50 anos abriu a porta ainda de camisola com um xale sobre as costas e lenço amarrado do cabelo. Seu rosto era de uma preocupação tamanha. Quando Jean desceu de seu lugar ao lado do cocheiro, sua madrinha reparou o rosto choroso do afilhado. Jean sentiu um nó na garganta e não conseguia pronunciar uma palavra sequer, mas correu, abriu um pequeno portão duplo sob um arco de ferro com plantas emaranhadas, passou por um pequeno jardim e ao chegar perto de dona Helena a abraçou forte que comprimia as costas de seu afilhado balbuciando frases de negação, a essa hora já sabia que o pior tinha acontecido. 

Jean liberou a diligência e adentrou a casa da madrinha. Como já era de casa, a sentou em uma cadeira junto a mesa da cozinha e passou um chá de camomila para Dona Helena, e depois um café para si. Sentado junto a madrinha, ele contou a história real do que tinha acontecido e o que relatou a polícia. Dona Helena sabia que ambos eram maçons, seu marido e afilhado e o perigo que corriam caso o intendente descobrisse. Ela sabia que Jean os amava e nunca faria nada de mal ao seu marido. Passando uma hora entre lembranças e lamentações, tentaram lembrar de qualquer desavença ou dissabor que Miguel Antônio pudesse ter tido, mas nada veio a mente, nem mesmo seus devedores, já que sempre estendia os prazos e facilitava os pagamentos. Jean em um lampejo lembrou que seu padrinho sempre teve diários, perguntou a dona Helena onde estavam guardados pois lá poderia estar a chave de seu assassinato.

Sua madrinha o levou até o escritório de Miguel Antônio. A porta fez um ranger engraçado ao abrir, era próximo das seis da manhã e os primeiros raios de sol invadia uma janela circular que ficava bem acima da escrivaninha de cedro, que tinha um candelabro de três braços e velas em meia vida, a frente dela, uma pesada cadeira de jacarandá. A esquerda tinha uma estante que se estendia por toda a parede e estava recheada de literatura Francesa e portuguesa, livros caixa de seu comércio e na metade livros feitos sob encomenda, com capas e fios de couro que os fechava, estava alí, isso era o que o jovem investigador procurava. 

Jean tirou do bolso uma caixa de fósforos, riscou um palito e quase que de forma sagrada acendeu as velas, ao final sacudiu o fósforo até que ele apagasse. Começou a ler os diários na ordem cronológica e com calma, mas a medida que os anos passavam Jean os lia de forma diagonal procurando qualquer vestígio que indicasse um desafeto contra seu padrinho, mas nada, nada! Até que então…

 

28 de fevereiro de 1790

Nunca achei que fosse me apaixonar de uma forma tão voraz quanto por Bárbara. Nos conhecemos ainda em Portugal, um pequeno romance infantil, mas ela estava prometida a um fidalgo. Vim para o Brasil aos 18, e aos 20 à reencontrei aqui, na terra de São Sebastião em uma feira se deliciando com uma manga. Seus cabelos cacheados, e seus olhos amendoados tinham um “quê” de perigosos, um olhar de lunática que me deixava louco e mexia com meu líbido. Descobri que seu marido morreu, e estranhamente me senti bem com isso. Me perdoe Senhor, minha alma peca. 

03 de Março de 1790

Meu coração sangra, pois descobri que minha paixão ao ficar viúva se prostitui. Fui tão fraco e tolo que ao invés de rejeitar a ideia, me entreguei e paguei para me deitar com ela. 

20 de abril de 1790

Fiz uma proposta a Bárbara, eu a tiro da vida e a sustento com meu trabalho. Acredito que ela vá aceitar.

30 de abril de 1790

Barbara aceitou, aluguei um pequeno sobrado na rua da quitanda e comprei uma mobília modesta. Estamos muito felizes. 

15 de maio de 1790

Meu mundo caiu. Meu compadre Pierri Fenrir veio me contar exasperado para que eu largasse Bárbara, pois ele descobriu que ela tinha assassinado seu marido para se juntar a um mulato, e que depois ao ser contrariada pelo mulato ela o matou também. Meu Deus, não sei o que fazer. 

30 de maio de 1790

Eu embebedei a Bárbara, que durante os vapores do álcool me confidenciou que assassinou seu marido. Eu a xinguei e a chamei de assassina e a disse que a deixaria. Ela ainda tomada pela frenesi alcoólica disse que se vingaria. 

17 de junho de 1790

Estou em uma fragata de volta a Portugal. Larguei meu amor, mas como posso viver com uma assassina? Que Deus tenha piedade de sua alma. 

 

Jean ficou surpreso e estarrecido ao saber do romance perigoso que Miguel Antônio teve na mocidade. O nome Bárbara não era estranho, mas será que tinha sido essa mulher a algoz de seu querido padrinho. Revisitou em sua mente os criminosos que estavam em evidência e logo lembrou de uma Bárbara, suspeita pelo sumiço de crianças e práticas de feitiçaria. Seu padrinho disse duas palavras em seu leito de morte, “fera” e “cidade nova”. Em um estalo lembrou que essa feiticeira tinha um apelido de “onça” e que seu padrinho já fora de suas perfeitas faculdades mentais, devido a dor, perfeitamente poderia ter trocado “onça” por “fera”, estava aí a sua resposta. Era quase meio dia, assoprou as velas do candelabro, mal se despediu de sua madrinha e saiu em disparado para rua. 

 

Continua…

 

Por Cloves Gregorio

Cloves Gregorio, 35 anos, casado com a senhora Gislene Augusta, Pai do Menino Átila, Historiador e Professor, Venerável Mestre de Honra (Past) da ARLS UNIÃO BARÃO DO PILAR Nº21 Jurisdicionada ao GORJ, Filiada a COMAB. Na Obediência já exerceu os cargos de Grande Secretário Adjunto de Cultura e Ritualística e Grande Secretário Adjunto de Comunicação e Informática.

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